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Nuno Faria em entrevista: “Os museus passam por fases de transformação ao longo do tempo”

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Em entrevista ao “Porto.”, o diretor artístico do Museu da Cidade, Nuno Faria, apresenta a Extensão do Romantismo, que abriu na passada sexta-feira, no primeiro dia Feira do Livro do Porto, depois de uma remodelação e reconfiguração profundas do projeto. Explica os fundamentos da nova conceção do museu e levanta o véu sobre o programa para o projeto, que tem como principais premissas o envolvimento da comunidade e das famílias, à semelhança do que aconteceu na Galeria da Biodiversidade, museu da Universidade do Porto que repensou todo o conceito para abrir as suas portas à cidade, numa agenda programática que estimula o conhecimento e o pensamento crítico, mas que também oferece um conjunto de atividades a pensar nas famílias. O espólio do antigo Museu Romântico foi recolhido para ser novamente apresentado noutros espaços do Museu da Cidade, mas a sua matriz romântica – essa – continua viva por toda a casa, com a vantagem de agora não haver baias a delimitar os espaços que, invariavelmente, remetiam para uma encenação teatral de um quotidiano burguês que ali não perdurou muito tempo. Todas as montagens serão sazonais, imprimindo dinamismo à sua matriz conceptual. Na primeira montagem, “Quando a Terra voltar a Brilhar Verde para Ti”, que já foi visitada pelo Presidente da República, estão programadas visitas guiadas. Entre as peças em destaque, Nuno Faria sinaliza o Herbário de Júlio Dinis, “o mais romântico dos objectos e o mais portuense dos escritores deste período”.

 

O antigo Museu Romântico da Quinta da Macieirinha deu lugar à Extensão do Romantismo do Museu da Cidade. Que novo conceito museológico temos para o espaço?

Em primeiro lugar, importa dizer que não queremos apagar a memória do Museu Romântico, que existiu durante 50 anos com alterações mais ou menos notórias – aspeto que, desde logo, se torna visível na opção de mantermos a designação de Extensão do Romantismo – antigo Museu Romântico, ou de no interior termos mantido alguns dos elementos da anterior montagem que continuavam a remeter para as possibilidades de leitura que são afins do nosso programa, nomeadamente os painéis de parede da sala de entrada. O Museu Romântico cumpriu um papel importante que achamos que já não cumpre.

Esta remodelação significa um corte com o passado em termos museológicos, sim, mas não significa um menor interesse ou uma desvalorização da história do Romantismo na cidade, no país ou noutros pontos da Europa. Bem pelo contrário.

 

Em que medida?

Gostava de recordar que a peça central desta nova montagem, para a qual todas as outras peças concorrem, é o Herbário de Júlio Dinis: o mais romântico dos objectos e o mais portuense dos escritores deste período, pelo que a nossa entrega ao estudo ao que do passado ainda se nos apresenta como eterna lição é total.

 

O que vai ser feito ao espólio do antigo Museu Romântico?

Os museus passam por fases de transformação ao longo do tempo — no caso do antigo Museu Romântico reconstituia uma casa da burguesia portuense, onde viveu, brevemente, um rei oriundo de um país estrangeiro, Carlos Alberto, Rei da Sardenha e Duque de Sabóia.

Justamente sobre o espólio que agora foi recolhido importa esclarecer que há duas situações em apreço. As peças que são propriedade do Município do Porto estão, neste momento, devidamente acondicionadas em espaços dedicados à Reserva Municipal. Tratam-se de incorporações por compra ou doação, desde os anos 70 do séc. XX até ao séc. XXI, que vêm sendo objecto de estudo, conservação e inventariação. Por outro lado, existem peças de entidades externas, que estavam em depósito e que se encontram em processo de devolução (processo esse que já se iniciou há cerca de três anos).

O Museu da Cidade integra na sua equipa técnicos que têm um profundo conhecimento material e formal das peças que constituem as colecções municipais e que cuidam da sua preservação, estudo e apresentação.

De resto, para memória futura, foram produzidos documentos sobre o Museu Romântico, textuais ou visuais, que preservam a memória desta casa, cujas peças e dispositivos cénicos ali apresentados foram estudados.

 

Está prevista a exibição desse espólio noutros moldes?

Pensamos o Museu da Cidade como um conjunto de salas dispostas ao longo de todo o território da cidade e, no que se refere ao espólio do antigo Museu Romântico, apostamos em deslocações das peças por espaços do Museu que estão inscritos no Eixo Romantismo, a saber: Casa Marta Ortigão Sampaio, Casa Guerra Junqueiro e Ateliê António Carneiro (atualmente em fase de arranque da intervenção que vai repor a traça original do espaço), para além da própria Extensão do Romantismo, naturalmente.

Preservar a memória das coisas, dos objetos, dos hábitos, das tradições, não passa necessariamente por encapsulá-las, preservá-los em formol, congelá-las num tempo já passado, já sem vida, já sem corpos, sem respiração.

 

Resolvida essa questão que Extensão do Romantismo temos?

Tal como foi concebida, esta nova era do Museu trabalhará em largo espectro sobre o Romantismo, ou os romantismos, no plural, quer artísticos, quer literários, quer musicais, no Porto e para além dele. Ainda mais do que um espaço expositivo, a Extensão do Romantismo será um espaço performativo, em que haverá uma constante programação musical, que incluirá sempre apresentações, em forma de conversa ou de palestra, com especial enfoque na produção musical do Porto, sobretudo na época romântica. Iremos, com a ajuda de especialistas, desenvolver uma pedagogia musical integrada, promovendo o contacto com as obras e, em contexto, pensar as condições da sua emergência e sobrevivência.

O mesmo acontecerá com as exposições, que serão dedicadas a temas tão diversos quanto o hiper-romantismo, que em Portugal teve sobretudo incidência no Porto, a apresentação de pintura de autores românticos, pré ou pós-românticos da coleção do Museu da Cidade, a apresentação da coleção de têxteis do Museu, nunca antes apresentada como um todo, mas também obras de autores vivos que actualizem formas românticas de viver ou conceber o nosso lugar no mundo.

 

A primeira montagem foca precisamente o Romantismo.

Sim. Nesta montagem, intitulada “Quando a Terra voltar a Brilhar Verde para Ti”, apresentamos obras de autores vivos, tais como Rui Chafes, o mais digno herdeiro da tradição do Romantismo Alemão na arte portuguesa contemporânea, Ilda David’, Manuel Rosa ou José Almeida Pereira, amparados por nomes como Júlio Dinis ou Teixeira de Pascoaes. Desde o início do projeco que o tema da relação do Museu com a natureza se impôs mais do que como uma evidência, como uma urgência: ‘como não pensar hoje o Museu como um lugar em extinção, num mundo que é um lugar em extinção?’. Nesse sentido, elegemos como mote da primeira montagem justamente o tema privilegiado da produção artística romântica, o mundo natural, que se alinha com uma das principais preocupações do mundo atual: a crise ecológica e a relação homem-natureza.

Concretamente, mas também metaforicamente, abrimos as janelas desta casa de campo ao jardim circundante, trazendo para dentro dela o tempo presente, dos acontecimentos, e não, como acontecia, fechada sobre si própria, cortinas e estores corridos, como se o museu não devesse ser permeável ao tempo em que se inscreve, o tempo contemporâneo.

 

Estão programadas visitas guiadas?

Sim, eu próprio farei as visitas guiadas à exposição todos os dias da semana de terça a sexta-feira, pelas 11:30 horas, durante o período da Feira do Livro. Para além disso, haverá visitas conduzidas todos os dias às 11:30 e 15:30. Com o horário prolongado para a Feira do Livro do Porto, as visitas decorrem também às 20:30 e a entrada é gratuita.

 

E depois desta exposição, o que se seguirá?

Faremos com o Romantismo o que fizemos com o Liberalismo, efetivando convites a especialistas que trabalharão com a equipa do Museu — dando como exemplo a exposição e o livro “1820”, realizados com o Professor Lopes Cordeiro, cujo rigor histórico foi, a par com uma apresentação expositiva cuidada, alinhada com parâmetros museológicos contemporâneos.

O Museu terá uma existência dinâmica, com remontagens sazonais, e um programa musical constante ao ponto de entendermos este espaço também como um espaço performativo.

 

O antigo Museu Romântico não cumpria a sua função?

Não era possível prolongar mais a visão que ali se perpetuava e que teve o seu tempo de existência. O antigo Museu Romântico é a tipologia de museu que não queremos, um lugar que é um cenário, um mausoléu, que nos devolve uma cenografia, toda ela artificial. Um museu não é uma peça teatral, não é um cenário de ópera. Ora, incomodava-me muito uma característica da montagem do antigo museu, que era ter-se tornado, sobretudo a partir da última remodelação, um lugar que exercia verdadeiro distanciamento social e induzia a uma experiência desanimadora de clivagem social, pela forma como, apresentando uma certa forma de vida de classes sociais da alta burguesia, vincava, pelas opções de montagem, a sua inacessibilidade aos visitantes, sobretudo jovens alunos em visitas escolares, cuja única forma de aceder às diferentes divisões era espreitar por detrás das baias que barravam cada uma das salas do espaço que correspondiam a divisões hipotéticas de uma casa. Não queremos isso, achamos que há outras formas de fazer pedagogia no âmbito dos museus.

 

Afastava em vez de aproximar?

De facto, durante o processo de reflexão sobre o futuro desta estação do Museu da Cidade – processo longo e muito reflectido, debatido com pessoas da equipa e externas à equipa –, fui perguntando a variadíssimas pessoas há quanto tempo não visitavam o Museu Romântico e as respostas foram surpreendentes: a maior parte dentre elas há 10, 20 ou 30 anos, outras indo uma vez e não tendo curiosidade de ali voltarem, outras acusando o anacronismo e a artificialidade do mosaico em que se constitui a decoração, representando, de alguma forma, um exemplar de casa romântica portuense cruzada com a evocação da breve passagem que ali fez um Rei de um Estado Europeu.

Tudo isto configura, naturalmente, uma visão demasiado estreita e parcial do que terá sido o Romantismo na cidade e, ainda menos, em Portugal. Poderíamos questionar o motivo pelo qual durante cerca de cinquenta anos se resolve dar destaque museológico a uma figura de uma monarquia estrangeira em detrimento de escritores românticos portugueses que viveram e criaram a cidade desse tempo. Parecia-nos desde o primeiro momento em que tomamos a missão de reinventar a ideia de um museu para a cidade, que aquilo que aqui se estava a ocultar por omissão era muito mais relevante do que aquilo por que se optava mostrar. Em especial por habitarmos a cidade onde se fizeram escritores e outros artistas de espírito romântico como Júlio Dinis, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett, Agustina Bessa-Luís, Alexandre Herculano, Florbela Espanca, António Carneiro, Aurélia de Sousa, entre outros.

 

O novo projeto pretende então contrariar essa visão estreita sobre o Romantismo?

Com o repensamento e remodelação do Museu da Cidade, cujo programa passa por ligar espaços tão heteróclitos e tão radicalmente diferentes entre si, a Extensão do Romantismo será um lugar em que se repensa a própria condição do espírito romântico como sendo trans-histórica, atemporal e, por isso mesmo também – e muito – contemporânea.

Queremos que esta casa – que, diga-se, transformámos num espaço de exposição particularmente qualificado – seja um lugar de encontro, de discussão e de construção da comunidade. Por esse motivo, Júlio Dinis apresenta-se aqui como o primeiro dentre os muitos motivos que contemplamos para o encontro, sempre pela mão das obras dos autores em que nos apoiamos para ver melhor a cidade.

 

“Quando a Terra voltar a Brilhar Verde para Ti” fica em exibição na Extensão do Romantismo até 27 de fevereiro de 2022.

HORÁRIO

Terça—Domingo 10H—17H30

Sábado e domingo: 10 às 21 horas (horário alargado durante a Feira do Livro do Porto)

BILHETES

Entrada gratuita durante a Feira do Livro do Porto. Após o evento, a entrada permanece gratuita para os detentores do cartão “Porto.”.